Dayana:
Dia agitadão! Hoje sim bora lá. Acordamos 04:15 e partimos rumo ao barco que sai as seis de Guaraqueçaba para a Ilha das Peças. Delícia de caminhada e de viagem, acompanhados pelo alvorecer de um dia lindo e de “Denise está chamando” (um artigo sobre um filme com o mesmo nome que tem como tema a relação entre “indivíduos” na “modernidade” - bem interessante...). Chegamos e, sem telefones funcionando pela Ilha, optamos por ir na casa Renato. Acordamos o rapaz, filamos um bom café da manhã e muitas histórias...
Eis um pouco do que eu lembro. É uma mistura do que lembro que Renato falou. Portanto não é nada fidedigno. É o meu olhar sobre o olhar dele.
- As treze curandeiras dos arredores e seus saberes e cuidados com quem tem “os livros” de séculos atrás (1700... ou século XVII...). Os livros são em latim. Não, elas não sabem latim: elas são (ao menos em sua maioria) analfabetas no mínimo funcionais. Mas teve um padre que passou por aqui e ensinou para algumas pessoas orações em latim que elas mimetizam em suas rezas. As curandeiras dominam os saberes sobre as ervas. E são muito procuradas, porque é preciso saber a quantidade exata: um pouco de uma erva não funciona, e muito é veneno. Elas moram em lugares mais afastados, porque senão elas não têm paz. Tem muita gente querendo morar perto de curandeira. É como posto de saúde. Mesmo afastadas chegam barquinhos toda hora em suas casas. O forte delas também é a reza, que não dá para entender direito, são uns resmungos... Só não pode ser benzido mais de uma vez por semana e grávidas e bebês precisam passar longe disso.
- Os ajoelhados são aqueles que se converteram e depois “desconverteram”. Pega mal... “Fácil quem “desconverte” virar alcoólatra” uma vez que é excluído socialmente. O ajoelhado não é uma pessoa de confiança. Se vc conhece algum logo vem alguém que fala: “Você vai confiar nele? Ele é um ajoalhado”. Quem se converte não bebe, não dança, não joga futebol e só pesca com outro crente. E tem cara que tá bêbado, passa na Igreja de bagunça – porque tem música e tem gente -, acaba ajoelhando e aí já era... Tem que assumir a bronca. E o cara não aguenta ficar sem jogar futebol. Se tem uma galera no campo jogando e o cara chega na beira campo querendo jogar a galera já o coloca no lugar dizendo que ele é crente e crente não joga. Mas na Ilha das Peças pouca gente se converte... A Assembléia, por exemplo, não conseguiu gente... A Igreja aqui tem grande apelo com as mulheres, porque elas querem que o homem fique mais em casa e pare de beber... Ajoelhado é relativo as igrejas “evangélicas”, “crentes”. Lá a maioria é católico não praticante. Mas tem gente que acaba burlando essa lógica: como o senhor que mora em uma certa comunidade que vai na “igreja crente” mas toda vez que passa um conhecido de barco na frente da casa dele o figura acende um cigarrinho que é para mostrar que não ajoelhou. Assim ele se “sociabiliza” com os “crentes” e os “não-crentes”. Ou a senhora que ao mesmo tempo em que vai na “igreja crente” e continua com suas práticas curandeirísticas. O problema para os crentes é a reza, onde se invoca diferentes entidades...
- Tinha [ou tem] um cara que foi morar na Ilha das Peças porque onde ele morava todo dia ele via um pássaro grande que pousava toda noite de lua cheia em uma mesma árvore. Um dia ele se invocou com o pássaro e ficou esperando ele aparecer. Atirou nele e não deu outra: acertou o pássaro. Entrou na mata e, no mesmo lugar em que o pássaro deveria ter caído havia uma mulher morta com um tiro no peito. Então ele fez não sei qual ritual e enterrou a bruxa com mais algumas pessoas da família. Teve que se mudar, senão as outras bruxas da região poderiam se vingar... Ficou conhecido na Ilha da Peças como não sei quem “da Bruxa”.
- Em algumas das pequenas comunidades da região o povo além de pescar, coletar e plantar, também caça. E caçam com todo respeito, comem tudo o que matam. Só não pode matar fêmea com filhote. Se você matar uma fêmea com filhote, seu filho nascerá com problemas.... A natureza se vinga. Quando um caçador vai para o mato olha com todo cuidado para ver se pode atirar. Teve um cara que atirou sem querer em uma macaca com filhote e acertou bem na coxa da cria. Ele levou o macaquinho para casa para cuidar. O macaquinho melhorou e cresceu. Ele se relacionava com todos da casa, menos com ele. E quando a filha dele deu a luz não deu outra: o neném nasceu com problema justamente na perna em que ele tinha ferido o macaquinho. Imagina a culpa que o cara sente: ele olha a criança manca e sabe que foi ele que fez aquilo. Também não se caça no período em que o Senhor das Matas está na mata, acho que entre novembro e fevereiro
- A carne de caça é bem especial. Quem como a carne de caça adquire as características do animal. O cara que vai cantar come não sei qual macaco porque ele grita forte. Quando a mulher do caiçara que caça engravida, ele sabe que precisa dar carne de macaco para ela comer. A mortalidade infantil entre macaco é nula porque eles são super-protetores e fortes...
E finalmente compreendi melhor a geografia da região vendo um mapa de uso caiçara que o Renato ajudou a fazer (não tem um para gente). Temos aqui duas iIlhas grandes: Ilha das Peças e Superagui. Conversando com os Nativos parece que são dezenas de ilhas. Mas é porque cada comunidade na qual que vc só pode chegar de barco é classificada pelo caiçara como ilha: Ilha do Abacateiro, Ilha do Sebuí e por aí vai...
Depois fomos dar uma volta pela Ilha das Peças. Conhecemos inclusive o novo cemitério, construído faz uns trinta anos. O “antigo” acabou dentro do mar pelas mudanças geográficas da região, talvez atribuídas principalmente aos canais construídos por perto (Superagui, por exemplo, é uma ilha artificial construída junto com e graças ao Canal do Varadouro).
Conversando com Renato optamos por fazer a instalação na Ilha com uma imagem do mestre Genir Pires, o último dos fandangueiros da área – que, aliás, tocava com o povo da Barra do Ararapira por falta de parceiros na Ilha das Peças. Seu Genir faleceu em dezembro de 2006. Depois de ir ao cemitério, fomos conversar com Dona Edith, viúva do mestre. Marcamos de voltar à sua casa lá pelas duas horas da tarde, afinal era quase a hora do almoço.
E que almoço! Foi na Associação de Mães. O melhor feijão que comi nos últimos tempo e, se marcar, um dos melhores peixes fritos da vida. Sequinho, sequinho... Aiai... Depois caminha! Acordamos perto das 14:00 e fomos para a casa da Dona Edith. Ela não estava, tinha dado uma “saída e já voltava”. Fomos para a praia, caminhamos um pouco e tiramos mais um cochilinho em baixo de um sombreiro. Depois passamos de volta na casa dela e nada. A casa estava aberta, com a tv ligada e nada dela... “Ela saiu”, disse o vizinho, que mais tarde descobrimos que ser o genro da dona Edith. Passamos na Associação e eu mal tinha desejado um daqueles bolinhos expostos sobre o balcão e Renato apareceu dizendo que tinha feito um café. “Me vê três pedaços de bolo: dois de banana e um de chocolate”. Depois do café, Renato nos levou até o berçário de botos. Fomos na base do remo. Mas o melhor de tudo foram as aves nas árvores do mangue.
Bora na Dona Edith. E ela não estava. Mas dessa vez fomos mais descolados e nos ligamos que todos que nos tinham dado informações sobre ela até então eram seus filhos ou afins. “Somos sete filhos ao todo”. Então bora lá explicar o projeto e pedir imagens. Conversamos com três de seus filhos e depois, finalmente, com a Dona Edith. Eles nos cederam 2 imagens de uma ocasião que tocou no AKDOV (Superagui). Conversando com a família sobre os lugares que seu Genir gostava de frequentar e sobre suas atividades cotidianas chegamos a possibilidades para a instalação na ilha: (1) ao lado da Associação de Mães, frente ao trapiche, onde o mestre ia observar o barco, o mar e prosear; (2) um boteco onde ele gostava de jogar baralho, e (3) a casa dos sobrinhos no campo de futebol, atrás da Associação. Agradecemos e partimos. no caminho, no boteco do carteado, encontramos Renato tomando uma cataia.
E cataia inspira. Renato mandou sugestões praticamente endossadas de imediato por nós: a construção dos suportes de madeira e, dentro do possível, talhados por pessoas da comunidade, e a inclusão de maneira mais explícita da comunidade na escolha da imagem que será utilizada no projeto. Se responsabilizou por fazer o suporte da imagem e por articular os locais. Isso que é colaborador!!!
E depois de cataias, salgados no clube de mães e cama!

Fotos: Leco de Souza.



 
 
 
 

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